data-filename="retriever" style="width: 100%;">A minha filha Isadora me saiu com essa, enquanto se servia de um pratão de mousse de chocolate num restaurante:
- Pai, vou morrer um pouco e já volto - disse ela.
Enquanto eu tomava chá de boldo - só porque não tinha à disposição diabo verde, mais apropriado pra desmanchar todo aquele espeto corrido -, fiquei cativado pelo jeito maroto da guria criticar a escravidão a que estava submetida pela gula. Aliás, essa piazada de hoje nos surpreende até quando faz graça dos próprios defeitos.
Morremos muito sem querer, e não apenas quando comemos algo que, de antemão, se sabe que vai fazer mal. Morremos bastante quando um filho vai embora de casa, mesmo que haja a promessa de que não irá se demorar. Morremos outro tanto quando se represa um beijo, se recolhe o abraço já perto de enlaçar, quando deixamos trancadas na garganta as palavras de incentivo ao amigo que passa por uma braba. E morremos várias vezes quando a imensa afeição que sentimos pela pessoa amada não se traduz em gestos, e fica só nas aparências. Como se o amor tivesse a força suficiente de dar flores sem ser regado pela mão que afaga.
Morremos um pedaço em cada estação do ano, ao prosseguirmos sem voltar os olhos para a vastidão da pobreza a nos observar cabisbaixa. Ímpios espectadores da dor alheia, logo adiante seremos pungidos velhos precoces, a quem só restará fitar o egoísmo que resvala do coração agreste.
Para a filha Isadora eu peço que não dê bola para os adultos, que não sabem viver o básico, o bem próximo do trivial. Os que carregam uma alma que, de tão úmida de fel, nem parece de gente. Que os dedos ainda miúdos da minha Isa não sirvam para apontá-los na rua, como quem aponta um criminoso, mas para desenhar no alvo papel de cartolina a estradinha sinuosa que os levará de volta à casa da compaixão. Porque ninguém nasce ruim. A maldade se adquire na caminhada.
E que aprenda com o poeta inglês John Donne, que "nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. E se um dia os sinos dobrarem, que seja por aqueles que só morreram depois de viverem também para os outros".